TRANSFUSÃO DE SANGUE: AUTONOMIA, PLURALISMO E A RECUSA
ÚLTIMA NOTÍCIA DO JUDICIÁRIO: MÉDICO QUE RECUSAR OPERAR PACIENTE SEM TRANSFUSÃO DE SANGUE PAGARÁ INDENIZAÇÃO AO PACIENTE. VEJA A JURISPRUDÊNCIA:
Ana Carolina da Costa e Fonseca
Resumo: Este trabalho apresenta discussão filosófica sobre a relação entre o princípio da autonomia e o pluralismo, considerando a tomada de decisões sobre a vida alheia com base em valores morais próprios, que tem nas Testemunhas de Jeová um caso exemplar.
Analisa decisões judiciais proferidas por juízes brasileiros que autorizam hospitais a realizar procedimentos médicos contra a vontade de pacientes que são Testemunhas de Jeová, mesmo quando estes estejam em condições de realizar escolhas autônomas.
A discussão pondera a respeito dessas sentenças indevidas com vistas a mostrar que, para além da exigência de que uma decisão deva ser tomada de modo consciente e livre, ocorre, igualmente, uma avaliação moral de seu conteúdo.
Conclui que subjaz ao princípio da autonomia a presunção da existência de uma pluralidade de valores, que acarretam diferentes concepções de bem. Algumas delas amplamente aceitas; outras, repudiadas.
Contato
Ana Carolina da Costa e Fonseca - ana.berlin@gmail.com Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Departamento de Educação e Informação em Saúde. Rua Sarmento Leite, 245 CEP 90.050-170. Porto Alegre/RS, Brasil.
Autonomia, pluralismo e a recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová: uma discussão filosófica
Medicina sem sangue: No Brasil, os hospitais adotaram esse protocolo de atendimento, baseado em orientações internacionais
Com base em evidências científicas, médicos e hospitais têm adotado protocolos para racionalizar o consumo de sangue nos mais diversos tipos de tratamentos...
Já faz um certo tempo que a real necessidade do uso do sangue como um recurso terapêutico tem sido questionada. De acordo com uma série de pesquisas nacionais e internacionais, a transfusão, em alguns casos clínicos, pode trazer mais riscos do que benefícios à saúde do paciente. Para solucionar os problemas sem recorrer ao procedimento, a Medicina moderna adotou um conjunto de medidas denominado Programa de Gerenciamento do Sangue que, por meio de novas técnicas, aparelhos e medicamentos, disponibiliza alternativas de tratamento comprovadamente seguras e eficientes. Ribeirão Preto abriga um exemplo positivo nesse sentido, visto que o Hospital São Lucas já está implementando esse modelo de atendimento.
O empenho das Testemunhas de Jeová foi um fator determinante para que essa evolução acontecesse. Por convicções religiosas, esses fiéis não se submetem à transfusão de sangue. Em busca de diferentes caminhos para salvar vidas, o grupo se muniu de informação e, embasado por evidências científicas, iniciou um trabalho de estudos e de conscientização sobre o tema. Foi então que surgiu a Comissão de Ligações com Hospitais para as Testemunhas de Jeová (COLIH). Em funcionamento desde 1987, a rede conta, atualmente, com cerca de 1.700 delegações, atuando em, aproximadamente, 110 países. Na entrevista a seguir, Irimar José Jácomo, presidente da COLIH de Ribeirão Preto e região, explica melhor essa limitação, revela as conquistas alcançadas até aqui e comenta sobre o impacto dessa iniciativa, que vai além da questão da fé.
Por que a COLIH foi criada?
Para facilitar a comunicação entre médicos e hospitais com os pacientes que são Testemunhas de Jeová. Fazemos um trabalho junto a médicos e hospitais, fornecendo artigos e informações sobre as possibilidades de tratamentos sem sangue. Também realizamos apresentações sobre o tema e oferecemos assistência pastoral. É um serviço gratuito, disponível 24 horas.
Por que as Testemunhas de Jeová não concordam com o uso do sangue como um recurso terapêutico?
É importante frisar, antes de tudo, que as Testemunhas de Jeová amam a vida e querem preservar esse dom da melhor maneira possível. A ideia de que não procuramos o médico quando estamos doentes, de que não nos cuidamos e de que não aceitamos medicação é um mito. Temos uma única restrição nessa área da saúde, que é a do não uso do sangue. Entendemos que a injunção bíblica de abstenção de sangue, encontrada em Atos 15:28, inclui, também, a utilização dessa substância como medicamento. Portanto, estão proibidas a transfusão de sangue total e a de qualquer um de seus quatro principais componentes: glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma.
Esse posicionamento ainda gera conflitos entre a autonomia do paciente e a responsabilidade médica?
A constituição brasileira estabelece os direitos e os deveres tanto de pacientes quanto dos médicos. O direito de recusa do paciente, em qualquer forma de tratamento contrário à sua vontade, está previsto na legislação e deve ser respeitado. Apesar disso, aqui no país, ainda presenciamos desentendimentos em torno do assunto, talvez por falta de informação. Alguns especialistas se negam a prestar atendimento se a pessoa que precisa de assistência, ou a família dela, não autorizar a transfusão. Quando isso acontece, a COLIH pode ajudar, pois mantemos um registro atualizado de colaboradores, com profissionais e instituições favoráveis ao tratamento sem sangue.
A demanda desse público por métodos diferenciados foi um dos fatores que estimulou estudos científicos mais aprofundados na área da saúde?
Sem dúvida. Graças a essa recusa, hoje, existe uma vasta literatura médica mundial com pesquisas e estudos mostrando os pontos positivos e os negativos do uso terapêutico do sangue. Diversos profissionais, de diferentes áreas, comprovaram, na teoria e na prática, que o descarte da transfusão não leva o paciente, necessariamente, a óbito, como se pensava antigamente. Pelo contrário. Na realidade, com o intuito de suprir essa demanda, foram descobertas técnicas e medicamentos capazes de combater as doenças de outras formas que podem, inclusive, trazer mais benefícios à saúde do paciente. A comprovação desse fato reduziu, drasticamente, os índices de transfusão no Brasil e no mundo. Grandes e complexas cirurgias são realizadas com métodos e equipamentos modernos que minimizam a perda do sangue. Há, também, uma grande quantidade de remédios que contemplam muitas necessidades, melhorando a qualidade no atendimento de quadros clínicos variados.
O mesmo aconteceu no âmbito jurídico?
Sim. No campo jurídico, temos leis, jurisprudências e pareceres que levaram a um entendimento totalmente diferente do que era, até então, aplicado nessas situações. Hoje, tanto o Sistema Único de Saúde (SUS), quanto a rede complementar (convênios e particular) são obrigados a atender os pacientes que solicitarem, por convicção religiosa ou não, um tratamento sem o uso do sangue.
Essa conscientização ultrapassou o campo religioso?
Pessoas de diferentes crenças adotam essa postura? Um número crescente de pessoas pensa duas vezes antes de aceitar o sangue como forma de tratamento para si e para os familiares em cirurgias eletivas. Isso acontece com pacientes de variadas crenças, que se aprofundam no tema e descobrem que o sangue nem sempre faz jus ao seu apelo de salvar vidas.
A transfusão de sangue pode trazer riscos ao receptor?
O próprio Ministério da Saúde já se pronunciou afirmando que não existe nenhum tipo de sangue totalmente seguro. O manual da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também aborda os riscos advindos de sangue. Muitas doenças não são detectadas nos exames laboratoriais. Até um simples vírus de gripe pode ser extremamente prejudicial quando colocado em um paciente debilitado durante um procedimento cirúrgico ou em uma UTI. Ainda hoje, existem relatos de pessoas que contraíram Doença de Chagas, Hepatite B e C e AIDS, por exemplo, após uma transfusão. Além de tudo isso, há a possibilidade do organismo receptor rejeitar o sangue doado, desencadeando uma série de complicações.
O que acontece quando o paciente está incapacitado de opinar sobre o tratamento e um familiar tem que assumir a decisão?
A maioria dos nossos membros antecipa esse problema portando ou mantendo em lugar conhecido o “Cartão Diretivas Antecipadas e Procuração para Tratamento de Saúde”. Esse documento, com firma reconhecida e com dois procuradores, manifesta a opinião do paciente que, mesmo inconsciente, deixa clara a sua posição sobre os tratamentos que aceita e os que se opõe. Ao mesmo tempo, essa declaração isenta médicos e hospitais de qualquer ação posterior por fazerem valer a sua vontade.
Qual a orientação se a transfusão for a única saída para solucionar o caso?
Nessas situações, cabe a cada paciente decidir, com base em sua consciência, se vai se submeter a um tratamento com sangue ou não.
Quais são as medidas alternativas disponíveis para quem não quer se submeter a esse procedimento?
Atualmente, existem algumas alternativas — entre medicamentos, técnicas e aparelhos — para tratar pacientes que não aceitam o sangue, como dispositivos cirúrgicos para minimizar a perda de sangue; métodos e dispositivos para controlar hemorragia e choque; dispositivos que limitam a perda sanguínea iatrogênica; técnicas cirúrgicas e anestésicas para limitar a perda sanguínea; expansores de volume, agentes hemostáticos para hemorragia/coagulação e agentes terapêuticos para tratamento de anemia. Em síntese, o sangue passou a ser mais uma possibilidade de tratamento e não a única opção.
Com base nessas descobertas, foi criado o Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente. As instituições de saúde têm se empenhado no processo de implantação desse modelo de atendimento?
No Brasil, cinco hospitais adotaram esse protocolo de atendimento, baseado em orientações internacionais. Além disso, várias instituições e profissionais, individualmente, são colaboradores dessa causa. Graças ao nosso trabalho informativo — e diante dos excelentes resultados na pesquisa e na observação pessoal — cada vez mais médicos, de diferentes especialidades, eliminam o uso de sangue nos tratamentos que prescrevem.
A população brasileira conta com esse tipo de assistência?
O Hospital São Lucas Ribeirão Preto- Sp, por exemplo, já iniciou a implantação do Programa de Gerenciamento do Sangue. Essa iniciativa tem o potencial de beneficiar milhares de pessoas em toda a região. Sabemos que estruturar um novo modelo de atendimento é uma tarefa complexa, pois envolve investimentos em aparelhos e em medicamentos, além da capacitação e do máximo comprometimento dos funcionários e do corpo clínico. Só com esse conjunto completo a instituição terá o repertório necessário para cuidar do paciente de forma eficaz respeitando a vontade expressa dele pelo não uso do sangue no tratamento. Quando tudo estiver pronto, acreditamos que essa iniciativa será um marco importante no sistema de saúde da cidade.
Essa é uma tendência consolidada no exterior e, em breve, também deve ser uma conduta padrão por aqui. Nesse quesito, o São Lucas, obviamente, antecipa-se. Ao utilizar técnicas modernas, corpo clínico habilitado e equipamentos avançados, eleva o atendimento dos pacientes a níveis internacionais com muita segurança. Ao diminuir os números de transfusões, o hospital também contribui para evitar muitas contaminações e complicações relacionadas ao procedimento, melhorando os índices de recuperação dos pacientes.
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